Sai todo mundo daqui

Sei que está cansativo sempre o mesmo papo sobre amigos e lembranças mais do mesmo. Foi um raio na minha cabeça. Nunca acreditei (ninguém põe muita fé) no papo dos avós, naquilo de que os amigos passam namoradas passam dores felicidades colágeno tudo vai passando até passar. Mas você cresce, se acabam as aulas, uns pulam pruma faculdade outros noutra, outros ainda, o mais comum, vão pro lado da diversão e subempregos(na semana op. de caixa, entregador, estoquista, cobrador de ônibus, servente-de-pedreiro et cetera, um carrinho uma motinha pra não depender de ninguém, e no fim-de-semana a loucura). Há também os que morrem, vira e mexe alguém que você jamais imaginou morto vai lá e morre. Mais choca do que deixa triste. Poucos ficam com a segunda alternativa. No começo pouco muda, o três-dentro-um-fora ao cair do sol, as conversas até tarde da noite, descalços na calçada, sobre o futuro, entregar currículos visitar faculdades ENEM, as piadas sobre a namorada gorda do seu amigo, as lembranças dos professores esquisitos da quinta e sexta-série, os acontecimentos do dia-dia: brigas com a mãe, algum tombo por aí, o telefone quebrado, o gol do Henry, do Corinthians, ah o Corinthians, o filme de ontem, o programa do Jô, o pânico no rádio, uma velha que caiu no ônibus, a gostosa do fim-de-semana, a de amanhã e meu Deus do céu, que menina era aquela que eu vi nas casas-Bahia ontem, e também qualquer outra que passar na cabeça. Ali é onde as suas canetas e chapéus vão doer realmente, vão dar fama de cancela-automática ao seu nariz enorme, humilhar sua unha grande, sua cabeça de pernambucano, aquelas orelhas grandes ou pequenas além da conta, canelinhas finas(principalmente se acompanhadas de braços muito fortes), estapear sua corcunda e ainda batizar seu moicano de cabelo-de-bunda, soltar peidos terríveis, um palavrão novo a cada dia, brigar pelo restinho do refrigerante, lembrar do dia que um tonto, bêbado, lambeu o pneu[cheio de merda, lama, o tempo era de chuva] da bicicleta de outro tonto, ou quando numa virada-de-ano atravessaram a via-expressa só de cuecas. Daí começam a entrar as namoradas, com seus problemas programas ciúmes e desculpas pra evitar o futebol, e também os empregos, que só deixam livre o domingo(quando deixam), que passa a ser da namorada. Nascem os pais na adolescência, o que já diminui a visita ao amigo, pai e marido, recém-casado com o desespero(o desespero sempre passa, mas às vezes não), e morando do outro lado da cidade. Nos novos caminhos da vida surgem novos gostos, manias, novas pessoas, pessoas que acabamos gostando mais que daquelas crianças que cresceram e vão vazando da memória aos poucos. O celular, naturalmente, termina quebrando e o novo não tem o número dos velhos amigos. Não importa, você vai acabar cruzando com algum deles na rua quinze anos depois, vão conversar quatro cinco minutos, ambos estão morrendo de saudade, podemos combinar qualquer coisa dia desses, esquecer de trocar os telefones e não se ver nunca mais.

Acabei falando muito. Perdão, Tite. Ontem foi dia de Fabrício anunciar sua fuga. Juntou mulher e todo o resto e vão sumir pra Santa Catarina entre amanhã ou depois. Na despedida, bebemos ele e eu quase um litro de vodca mais um corotinho de chocolate que estava só o mingau, e fogo no bom e velho, que não pode faltar. Conversamos trivialidades, não nos víamos há bons meses. Contou o que espera da cidade nova e perguntou o que eu espero daqui onde estou. Não respondi. Me disse ainda, com os olhos tristes, que dificilmente voltaremos a nos ver, pois se é difícil sair do mato pra ir passar férias na praia, o contrário não deve ser mais fácil. Eu ri. Antes de ir, ainda recusou bolar o último baseado, literalmente o último. Tocava blues do elevador, do Zeca Baleiro. Sem problemas. Só lhe disse que em trinta anos, se Deus quiser vinte, ele se lembrará dessa noite, e o que vai lhe comer é o maior arrependimento por não ter estourado essa bomba nessa canção. Mas hoje eu só quero chorar/Como um poeta do passado/E fumar o meu cigarro.

Um dia Ivan, o Corcundão(Ivan o Corcundão a solidão que eu fumei e um abraço pra São Sebastião), me disse que, se quisesse se matar, quando der na telha, não faria de outra maneira que não uma facada no bucho. Tiro, corda, remédios, pontes bem altas prédios, nada. Facada no bucho. Segundo ele próprio, a única imagem que consegue conceber de si, morto, é estatelado no chão da cozinha, com uma faca no bucho. Hoje Ivan está na Bolívia, se é que está na Bolívia, e sua cozinha já não existe, derrubaram. Não deu tempo de morrer nela. Tanto faz. Tempo pra morrer não nos falta.

11 comentários em “Sai todo mundo daqui

  1. Não sei se você já passou pela sensação de faltar fôlego lendo um texto. Vez ou outra tenho disso. Talvez eu tenha interagido com a velocidade do texto, ou talvez seja uma nova crise de asma. De qualquer forma, ótimo texto! Abraço.

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