Bom dia, disse o homem. Silêncio. Oi, bom dia, eu queria, oi, escuta, eu queria uma… brecou as palavras ao perceber a moça do Caixa paralizada, olhar fixo nas nuvens, ao redor uma penca de caixas espalhadas no meio do corredor, atrapalhando a passagem. Embalagens estouradas, chão imundo. Julia sequer notou sua presença. Havia dito ao entregador que trouxesse as caixas e deixasse ali, bem no cantinho, no fundo do primeiro corredor. Foi tudo muito rápido. O telefone na sala da gerente, vazia, tocou. Ela correu atender, era a gerente que, doente, enchia o saco o dia todo, via telefone. Limpe isso, não esquece daquilo antes de fechar, separa sei lá o quê assim assim, não deixa nota alta de bobeira no Caixa, presta atenção. A força do tédio levou seu olhar a passear pela sala, buscando qualquer desculpa a se agarrar pra bater aquele telefone. Então ela viu. Pela fresta da porta, o maluco da entrega arremessando caixas de cima do caminhão direto pra dentro da loja, parecia atacar um alvo imaginário, o rosto pegando fogo, mirando o nada. E tome caixa. Uma, duas, três, dez doze caixas contendo sachês de maionese, mostarda, barbecue com 500g 1kg et cetera, se espatifando e se espalhando como se buscassem a morte. E a velha não calava a puta da boca. Também não aparentava ouvir nada – pra Julia, dona Justa parece nunca ter desenvolvido a capacidade de falar e caminhar ao mesmo tempo. O mercadinho gritava, urrava de dor, e a velha nada. Julia já conseguia imaginar o quarteirão inteiro em entulhos, sem uma única prateleira viva, quando desligou o telefone, puxou da tomada o fio pra depois fingir uma queda de energia e saiu correndo, aflita, de encontro ao fim do mundo. O que viu não a assustou tanto quanto o que imaginou, não deu tempo pra raciocinar, ao ver o desgraçado dar partida sem justificar uma vírgula, saiu possessa praguejando as piores mortes que conseguira imaginar e, se ele não estivesse já quase na esquina, com um grande dedo ainda apontado pra trás, não andaria nunca mais naquele caminhão depois de ouvir o que o esperava. Lágrimas descendo no rosto, as pernas bambeando, Julia fitou o horizonte, sem entender que diabo foi que se deu ali. Quem sabe o furacão que trouxe isso, passe e arrume tudo. Mas o furacão estava num enorme caminhão, por aí, rindo da cara da otária que teria de limpar a merda toda e ainda dar de convencer a velha Justa do inexplicável. As câmeras espalhadas nas paredes não passavam de enfeites. Enfeites empoeirados que deixaram ali, pendurados, a passar uma falsa sensação de segurança. Tinha de ligar na Transportadora responsável e contar o que viu. Mas não lembrava de nada. Entrou em pânico. Passou a tremer. O peito doía, suava frio e o suor ardia. Não queria se virar, sentiu o corpo desistir. Precisava voltar ao trabalho.
Lucio até tentou passar pelo primeiro corredor depois da porta, como pediu a mocinha, mas era o mais estreito de todos. Três estantes se apertavam num espaço pra uma ou duas e olhe lá. O único jeito seria erguer as caixas o mais alto que o braço alcançasse, caixas largas e desconfortáveis. Ele tentou. Ergueu as caixas pra além da cabeça e foi, foi bem bem bem devagarinho, lutando contra as dores em cada milímetro do corpo e a imensa vontade de derrubar tudo e sair por aí até encontrar e então matar o novato que tiveram de mandar embora no segundo dia por chegar tão bêbado quanto as horas permitiram beber e gritando um nome de mulher. Foda-se a sua mulher, vai embora daqui, gritou Lopes, pra em seguida dar a Lucio a “oportunidade” de ganhar um dinheirinho extra: cobrir o turno da manhã. Lucio sabia, não chegaria em casa antes das sete da noite nem em seus sonhos mais extravagantes. Deu que depois de passar toda a madrugada pra cima e pra baixo carregando as caixas que o turno seguinte deveria descarregar, fazendo planos pruma folga que não via, no mínimo, há uns quatro longos meses por conta da falta de funcionários que ninguém na Transportadora parecia muito empenhado em resolver, ali estava Lucio, pela terceira vez na semana, dobrando horário. Quando enfim chegou ao fundo do corredor, não encontrou qualquer espaço que não atrapalhasse a passagem, ficou sem saber o que fazer, respirou, largou tudo ali e foi até o Caixa ver com a Operadora o que fazer. Ela não estava. Talvez no banheiro, pensou ao observar a porta fechada. Esperou. Esperou uns três minutos que mais pareceram setenta anos. O ódio da vida já subindo pela garganta. Essa menina que se engasgue com a privada entalada no rabo, balbuciou ao virar as costas, subir no caminhão e dar início ao show. As caixas voavam, uma a uma agredindo ferozmente a pequena portinha de vidro arreganhada. Alguns dos sachês estourando, cagando tudo com molhos coloridos, prateleiras, chão, balcão, geladeira, vidros, um caos. Fechou o baú, picou e jogou no chão a Nota Fiscal e, só quando já socava o pé no acelerador, foi que ouviu os gritos estridentes da mulher berrando, da porta, ameaças as quais ele só entendia palavras soltas como denunciar, seu merda, volta aqui, filho da puta e outras a soar feito canção mais o caminhão se afastava.
Lucio então acendeu um cigarro, respirou fundo, jogou pela janela o boné azul com o logo da empresa, sentiu a paz das certezas que um bom surto pode enfiar na gente, pois bem, não entregaria mais uma encomenda sequer em razão daquele preguiçoso imundo do Lopes.
Bom dia, o homem tornou a dizer. Deu três duras batidas no balcão. Vamos, acorda pra vida, olha o inferno que está isso aqui, mexa-se, rosnou abrindo os braços, tentando abarcar a loja inteira. Pegue pra mim uma… mais uma vez interrompeu a fala ao perceber que falava sozinho. Julia olhava por cima do ombro do rapaz, como se procurasse algo. Ah, foda-se, quero mais nada, mas saiba, menininha prepotente, sua patroa saberá, com detalhes, que tipinho você é. Julia forçou um leve riso de canto, olhou pro homem, esfregou nos olhos as costas da mão, murmurou algo como muito obrigado, volte sempre, e se largou em sua cadeira, observando o inofensivo azul do céu.
As emoções afloram à leitura, quando vão elas sentindo cada linha, em outra tinta, de uma história bem conhecida escrita na alma a sangue e em primeira mão.
Essa escravidão moderna é mais insana do que a pré-capitalismo. E estava eu lendo sobre isso, quando vim ler teu texto. Coincidências.
Com o tempo, a igualdade de direitos chegou a quase todos; quase todos temos o direito de viver como escravos. Exceto os bem-nascidos, os herdeiros, os bem-relacionados elogiantes, os extremamente sortudos e os desonestos.
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Gostei muito… que escrita tão fluente e emotiva, a arrebatar-nos em cada frase. Adorei a história.
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