Solidão, que poeira leve

Como dizer que não estou com você quando estamos sorrindo, pior, gargalhando? Como dizer que não quero estar com você mas você não tem nada que ver com isso? Histórias tristes, sempre histórias tristes. Em vez de chorar as pitangas por amigos que eu devia considerar mas não me importo, melhor seria falar do meu mais novo amor da vida. A magrinha do ônibus. Não faço ideia do nome. Se chega a um e cinquenta é muito, morena clara cabelos lisos castanhos até o meio das costas, deve ter seus quarenta cinquenta quilos também, uns vinte e um vinte e dois vinte anos, só por olhar assim não sou bom em calcular nada, mas confesso que vê-la seis e tantos da tarde, sentada no ônibus conversando com a colega do trabalho, soltando de quando em quando aquele risinho cansado de canto com a cabeça encostada de leve no banco, olhando pra amiga e depois vidrando pela janela em lugar algum no horizonte, como quem ouve Love Of My Life no fone e se sente num filme triste, me pego imaginando a chegar pertinho dela pra fazer cafuné até ela dormir no meu ombro. É poesia que não conheço nada: se é inteligente, engraçada, brava, o quanto tem de paciência, é preciso muita paciência pra viver comigo, cor favorita, filmes, o que gosta de ler, se lê cagando o livro que está lendo ou deixa no banheiro uma revistinha própria pra isso, doce ou salgado, barulho ou silêncio, se é Corinthians ou Palmeiras, que seja Corinthians, pois em qualquer final de Libertadores posso dar por vender a casa a preço de banana pra custear a viagem e vou precisar de compreensão, se passa esmalte gosta de brinquinho pequeno ou dois bambolês pendurados, se prefere sapatinho sandália ou All Star, se liga ou não pra comida requentada no micro-ondas. Quiçá um dia, ônibus transbordando, sem espaço nem pra respirar, ela tenha de parar face a face comigo, e eu possa então ficar encarando fundo seus olhões castanhos até entender tudo, e enfim tirá-la daquela lata de sardinhas e deitá-la toda num poema, onde ela terá o espaço que quiser, com muito vento no rosto e sem gente suando roçando onde não deve. Até lá, pra evitar deixar ela sem graça ou parecer taradão, continuarei olhando seus cabelos castanhos, feitos pra deixar o fim de tarde mais bonito, de rabo de olho, pelo reflexo do vidro, olhando ao redor como quem busca a paisagem pela janela ou fingindo arrumar qualquer nada na bolsa pra olhar sua bunda. Já pensei que ela não pode me dar um tiro por lhe dizer oi, mas num ônibus final de tarde, depois dum dia inteiro de apurrinhação, a última coisa que você quer é gente inconveniente enchendo o saquinho. Já perdi pra lá de um tempão arrastando pro lado as sugestões de amizade do FB na esperança dela aparecer de repente, mas ela mora no ônibus das seis da tarde e fora de lá ela não existe. O ônibus é o Jardim Santa Clara, caso alguém queira caguetar seu paradeiro – ou vê-la mais de perto.

Não é que eu não queira estar com amigos, eles existem e são poucos e me chamam em casa e já faz tempo resolvi parar de fingir que não estou, já um progresso. Nós saímos e conversamos e rimos e eles dividem entre si suas neuroses. Sabem que minto quando digo que os anos em que me exilei no quarto foram tranquilos, que estava apenas trabalhando e sem muito tempo pra ver gente. Sei que comentam vez ou outra e estranham quando falam do futuro e respondo que amanhã vou acordar cedo e sair pro trabalho. Difícil é te convencer de que com você não tenho nada, é comigo que não quero falar.

16 comentários em “Solidão, que poeira leve

  1. Um dia escrevo uma crônica boa — em dois parágrafos.
    Vi a menina, vi você, me senti cada um dos personagens.
    Um tempo depois de ler, achei aqui de você entregar um bilhete, poucas linhas. Dobrado, grampeado, quadradinho. Uma vez recebi um assim de uma aluna, e dá curiosidade de ler; imagine mulher, que já é curiosa para essas coisas por natureza. A diferença no meu caso é que já conversávamos, ela só não tinha coragem de me chamar para sair. No circular Jd. Santa Clara, entregue-o quando forem se separar, com um “hey”, talvez um sorriso suave, expressão leve. Carrancudo ou sorridente deve dar medo — tempos atuais. Deixe seu whats, ou email. Do jeito que você escreve e pensa, é bastante possível que ela queira conversar, quanto mais livre e menos vazio isso puder parecer. E se há uma coisa que você não é, é vazio ou superficial. E conversar contigo em grafismos ou sons, há de ser interessante. Interessante em seu sentido original, não esse batido pelo uso indiscriminado por aí.

    Um olhar triste de “Love of My Life” pela vidraça urbana, há de pedir um pouco de conexão.

    Ao segundo parágrafo, vejo que temos neuras de base comum, estados de mau com o mesmo si mesmo.

    Você escritor é tão humano e poético. Se eu ajudar a criar um monstro, pelo reconhecimento que outros chamam de elogio, digo que não tenho culpa, a genialidade é uma doença obsessiva própria, incurável e praticamente intransmitível. É mais fácil o Neymar parar de se jogar, que você sair dando soco por aí. Mas vai que… Olha, Dearrot, não precisa socar. Um chapeuzinho bem dado basta.

    OPA. (desculpe, não resisti!)

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    1. Um bilhetinho do nada sempre faz bem, boa ideia. Ela pode até ignorar se quiser, achar brega careta, mas ninguém pode negar que a simples ideia de saber que alguém pensou na gente já dá uma leveza na autoestima. Muito obrigado.

      E obrigado também porque seus comentários não só complementam mas muitas vezes simplificam o que eu não consegui explicitar como queria. E isso deixa coisas na cabeça da gente que mais pra frente a gente usa e nem lembra de onde saiu. É nóis.

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  2. Dearrot, nessa tu foi bem direto no assunto. Agora imagine que tudo o que foi escrito aqui acontece com todo tipo de homem, embora ninguém saiba, porque não falamos sobre isso, sobre nada.

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    1. Já faz tempo vi o Fred do Scooby-Doo resumindo o mundo masculino numa frase: desabafo é pra maricas. Eu adorava Scooby-Doo. Não que desenhos infantis tenham culpa em alguma coisa, mas nós crescemos nos apoiando no que gostamos, e o herói não chora. Pai não chora, ele dá um jeito. É isso: só os fracassados choram, e a mocinha não quer saber do fracassado. Ninguém quer saber do fracassado.
      Muito obrigado a atenção, e uma puta virada de ano. Tamos aí

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  3. Flutuei pelo seu texto tanto que consegui até imaginar a menina, o ônibus, todo o contexto, parabéns sua escrita é poética e me fez viajar no que escreveu.

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