Bazar da Lua – Capítulo I (Porém, não prometemos um capítulo II)

A rua era curtinha, estreita, mas abria caminho pruma outra ruazinha que se você seguisse nela e depois imbicasse pra esquerda, daria numa avenida que te levaria reto pro centro da cidade. Cidade de Marília. Cidade estranha. Compacta talvez seja a palavra. Povo tranquilo. É quase um vilarejo que cresceu rápido demais e quando se deram conta, os marilienses já eram pra lá de cem mil. Tanto que ainda hoje, morando numa cidade relativamente grande, continuam a chamar o centro da cidade de “Cidade”. Tenho que ir lá na cidade resolver tal coisa. Amanhã vamos na cidade comprar o uniforme do Juninho. Tem uma lojinha assim e assim lá na cidade, vai lá que você resolve isso aí. Pois é. Você sai da roça mas a roça nunca sai de você, dizeres de mamãe – qualquer mamãe. Infelizmente isso parece não estar funcionando com as novas gerações, que deram pra chamar o centro da cidade de “Centro” mesmo. A dita modernidade. Mas o esquecimento há de abraçar a todos, uns mais cedo outros mais tarde, sem misericórdia – as únicas exceções são Tom Jobim e Pelé. A nós, meros mortais, resta a grande piada que é ter de viver. E mesmo apenas uma piadinha sem graça, sorrimos, sorrimos e gargalhamos. Aí está a sutileza da nossa eternidade. Somos a piada que ri do bufão. Na cara dele. Lembramos de sorrisos e lembrar de um sorriso já é um pouquinho de eternidade. Enquanto você lembrar de mim, estaremos aqui. Até que você também seja esquecido e nos deitemos todos no vasto campo da indiferença. Com a devida ressalva, é claro, a Tom Jobim e Pelé. Voltemos ao início. Na outra ponta da ruazinha ficava uma pracinha. Poucos banquinhos rodeados de grama sempre verdinha e aparada por alguns vizinhos. Instrumentos de academia ao ar livre pra idosos. Gatinhos passeando pra cá e pra lá. Namorados planejando o futuro. Crianças de doze anos bebendo Corote. Pois bem. Apesar do bairro pequenininho e não tão seguro assim, viviam ali, vizinhos e passantes, em razoável harmonia. Levando do jeito que dava. 

Foi ali, numa casinha vermelha cravada no meio do quarteirão, onde nasceu o bazar da Lua. Famosíssimo num raio de cinco, quem sabe seis ou até sete quarteirões. Nasceu da dificuldade, da graça, da beleza, do charme e do veneno da mulher brasileira. No comecinho, Lua vendia apenas umas roupas e outras bijuterias por um site da internet. Saiu catando roupas em estado decente com amigos e conhecidos, pra começar do começo. Juntou blusas suas, tênis do irmão, brincos e anéis de mamãe, e acabou pegando gosto na coisa. Ia comprando baratinho pra ganhar pouquinho também. Transformava blusa em saia, calça em short. Uma mão de tinta e uma boa limpeza transformavam tênis usados em peças de vitrine. Pegava umas camisetinhas velhas e com poucas tesouradas elas ficavam novas feito magia. Não ganhava quase nada mas dava pra pagar o aluguel e evitava o suicídio. Os poderes dos deuses da arte. Sempre foi uma pessoa de trato simples. Prática. Tudo com ela dá jeito. Sorria por nada, agradecia até quando saía perdendo, e tem uma qualidade que consegue o cliente que quiser: é uma ótima ouvinte. Ela ouve mesmo. Adora escutar você reclamando dos seus demônios. Divide os dela se intuir que isso pode te fazer se sentir mais humano. Se preocupa, corre atrás de ajuda, mesmo que seja uma ajudazinha de nada, ela vai lá, procura, grita, se tiver que entrar em briga ela entra em briga, até currículo entrega pra você, se precisar. E ainda te arruma um dinheirinho se você tiver pela casa umas roupinhas boas que não esteja usando.

Desde que você não vote no Partido Novo. 

Com o tempo resolveu abrir um espacinho na garagem e botar uma plaquinha no portão. Bazar da Lua. As pessoas traziam suas roupas, bijuterias pra trocar e vender, sapatos, bolsas, histórias, passavam horas encostados na parede batendo papo, e o que era um brechózinho de roupas foi se tornando num ponto de referência do bairro. Quando viu já estava a vender bola de capotão, enfeites pra cômoda, biscuit de geladeira, fones de ouvido, porta-retrato. Faltou garagem. Só nunca vendeu pneu nem remédio, de resto se ajeitava tudo. 

No dia em que a polícia tocou fogo na casa, Lua estava na rua. Escondia em casa a mulher espancada dum ex-policial que ela nem sequer sabia ter sido policial um dia. Era Dora. Dora aparecia vez ou outra pra ver se conseguia uns sapatinhos pra filha ir na escola ou bermudas pra Joaquim ficar em casa e jogar bola com os amigos. Não falava muito de si, falava de novela, de programas da tarde, fofocas do bairro, dos preços no mercado, falava baixo e rapidinho e nunca ficava mais de vinte minutos. Chegava e saía assim, feito o Jackie Chan. Joaquim era o marido, poucos meses antes conseguiu terminar afastado da polícia após desferir sete, sim!, sete tiros num menino de dezessete anos por carregar nos bolsos seis pinos de cocaína e no olhar a expressão assustada de quem já cheirou bem mais que seis pinos. Sua alegação foi de que o menino o acertou com uma pedra grande na cabeça e ao tontear pro lado, não teve outra alternativa que não sacar o revólver e atacar contra o garoto. Sete tiros por uma pedrada. Ninguém nunca soube a opinião de seu parceiro de ronda. Na morte de qual bezerro pensava enquanto o colega lutava, ao lado, pra não morrer a pedradas. A Corregedoria da polícia não disse nada, eles nunca dizem nada. Só o que se sabe de concreto é que depois disso Joaquim passou a ser visto com mais frequência de bermudas e chinelo e arreganhado coçando o umbigo a mostra numa cadeira de boteco. E nada de perguntas. Tinham uma filha só. Claudinha. Estava escondida com a mãe mas não precisamos falar disso. Mentira, vamos falar sim. Dora costumava mancar bastante, mas mancava mais nuns dias que em outros. Usava a desculpa do tempo. É a friagem, ela dizia, e minha perna é ruim desde menina. Apanhava quieta e nunca no rosto. Só tomava chute onde dava pra esconder com roupa. E ai dela se não escondesse. Só podia sair pra mercado e no bazar da Lua. Eram os únicos lugares que Claudinha, sete anos, reconhecia como seguros. O mercado e tia Lua. A menina chegou ao bazar feito um trem desgovernado. Não dava conta de falar ou parar quieta. Balbuciava engasgada nas próprias lágrimas e só o que fez foi puxar Lua pelo braço e puxar e puxar e puxar. Na metade do caminho avistaram, na outra esquina, Joaquim avançar rápido ziguezagueando duma calçada a outra. Tinha respingos de sangue na camisa. Se esconderam atrás dum carro, deram a volta no quarteirão e nem precisaram entrar na casa pra ver pelo reflexo da porta de vidro, com alguns cacos já caídos, um vulto tentando se levantar. A primeira reação foi chamar a polícia. Ela fez. Indicou seu nome completo, endereço, o nome da mulher agredida, do agressor, da filha pequena, tim-tim por tim-tim. Limpou com as mangas da blusa um pouco do sangue que escorria pelo rosto de Dora. A arrastou pelos quatro quarteirões que separavam as duas casas, costurando pelas ruas pra evitar dar de cara com Joaquim. A acomodou em sua cama, botou a menina num banho quente e prometeu voltar logo com remédios e esparadrapos e curativos.

Dois policiais arrebentaram o portão fingindo perseguir alguém. Não durou cinco minutos. Nem gente tinha na rua. As pessoas costumam ter mais o que fazer numa quarta-feira, três da tarde. Só pombos e cães zumbizavam pelas ruas. Rapidinho você já conseguia ver fumaça de longe, mas os policiais tinham ido pra casa. A vizinhança, quando se apercebeu, tentou apagar, alguns em desespero jogando baldes de água a esmo, outros fracassando na tentativa de varar o fogo e entrar pra salvar Lua.

Suspiraram de alívio quando avistaram Lua virar a esquina.

Sacolas no chão. Joelhos no asfalto.

Da casa som algum.

O fogo ardendo.

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6 comentários em “Bazar da Lua – Capítulo I (Porém, não prometemos um capítulo II)

  1. Amei sua crônica. Retrata a realidade da nossa sociedade, a luta diária das pessoas que moram em bairros humildes, a violência contra a mulher, a violência doméstica, etc. Parabéns!

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  2. Sensacional! Queremos capitulo 2, por favor! Adoramos os seus textos e quem sabe um dia a gente possa fazer uma parceria qualquer de publicacao. Muitos parabens pela linda escrita.

    Curtido por 1 pessoa

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