Não digo que foi fácil me esgueirar pela porta. Também não foi muito difícil. Essas portas de correr você só enfia uma pata e ela já te abre um espacinho. Difícil estava permanecer dentro.
Deixa eu te contar uma coisa.
As coisas andam mudando muito rápido por aqui. Até outro dia a gente morava numa casa que dela dava pra ver o mundo passar. Passava cachorro, gato, gente, cavalo, boi, vaca, passava uns trambolhões gigantes carregando gente dentro. Na casa também morava uma velhinha que desapareceu de repente. Ficava me chamando de Fofinho desde cedo até de noite, pegando pra apertar, me beijando com bafo de café, de cerveja, de coca-cola. Gostava de anunciar em voz alta tudo o que fazia. Era uma loucura. A casa uma barulheira danada, cantava alto, conversava sozinha, gritava por tudo. E me apertava. Eu tentava me defender mas era só um bebêzinho. Hoje já sou quase um leão – oito meses e muitas moscas e baratas a testemunharem minha fúria. Queria ver a velha tentando me apertar agora, mas já disse: ela sumiu. Escafedeu-se. Sobrou só o idiota que me alimenta e a cadela. A Mel. Uma vira-lata burra que só ela. Vai morrer achando que somos amigos, não importa quanto desprezo e unhadas tome na cara. Enche meu saquinho o dia todo e por isso não vou falar mais dela.
Pois bem.
Depois que a velha se foi tudo ficou diferente. Agora não dá pra ver ninguém passar pelo portão. Não temos mais portão. Tem só uma porta que abre pouco e eu nunca posso passar. Quando consigo é uma baita confusão, ele corre atrás de mim xingando a mãezinha que eu nem conheci – deve ser por isso que a dele deixou ele pra trás. Me pega bravo e me joga pra dentro antes que eu consiga entender qualquer coisa. Não sei o que ele esconde mas do pouco que vi posso contar que temos escadas, e outras portas onde consigo imaginar por dentro a luta de meus irmãozinhos.
Nós venceremos, mas isso é assunto pra outro dia.
Hoje eu vejo o mundo de cima. O Rei Leão. Fico pendurado na janela vendo os passarinhos – só os passarinhos alcançam aqui. Lá embaixo as pessoas vão tão miudinhas, seria mais fácil pisar que nas moscas. Sorte a delas que eu não alcanço lá embaixo. Também não sou imbecil pra me jogar. Nunca vi gato passar voando.
Essa é a parte boa.
Agora o martírio.
A cachorra pode passar pela porta. Não apenas pode como vai e volta carregada no colo. Um absurdo. Morde meu rabo o dia inteiro e ainda recebe privilégios. E tem a decoração que também mudou. No lugar dos quadros e plantinhas que ficavam pendurados na outra casa, agora temos sujeira, pó, copos e pratos espalhados, livros em qualquer lugar, roupas em cima do fogão, em cima da TV, debaixo da cama. Minha caixinha de areia eu preciso chamar a polícia pra ver alguém limpar. Nem o banheiro dele ele limpa. Às vezes a cachorra mija na sala e o idiota só vai limpar horas depois. Pensando bem, talvez eu preferisse os amassos da velha. O cheiro de xixi rodeia nossas vidas e ninguém aqui além de mim parece se dar conta.
Digo “aqui”, pois lá fora o mundo é diferente – graças a deus, qualquer deus. Já vi o mundo dum portão e tudo o que você vê passar, passa diferente. A mesma pessoa não passa duas vezes de maneira igual. A perspectiva sempre muda. Eis o que eu quero dizer: é impossível você não notar que acabou de entrar numa casa apodrecendo, as paredes implorando misericórdia, a pia da cozinha criando músculos de tanto peso.
Quando ela entrou aqui pela primeira vez, logo pensei: pronto, mais uma pra mijar pela casa. Ela já chegou estranhando o cheiro, olhando assustada pra tudo. Assustada aqui significa nojo. Eu quase gostei dela. Finalmente uma luz, pensei. Todo mundo que vem aqui tenta amizade comigo – eu só quero que eles limpem minha caixinha de areia. Ela não foi diferente, veio pra cima de mim cheia de risinhos, me levantando no colo e falando comigo com o mesmo tom que usa com a cachorra. Mas a cachorra é idiota. Eu sou um leão. Não entendo por que eles simplesmente não aceitam que eu não sou amigo deles. E outra, nunca tente fazer amizade com um rei tratando ele feito retardado. Você só vai conseguir morrer. Ela sobreviveu porque foi a única que teve coragem, lê-se decência, de falar alto sobre o estado da casa.
Ela disse: a gente precisa dar um jeito nisso aqui, você não pode continuar vivendo assim. Tive de largar a janela e ir acompanhar isso com meus próprios olhos. Ele riu torto de vergonha e se defendeu: dá pra ir levando assim, outra hora eu vejo isso aí.
Nada como a humilhação.
~
Sempre que eu conseguia passar pelo cantinho da porta, um dos dois me jogava pra fora do quarto e corria a porta de novo. Eu não queria ver o que eles faziam um em cima do outro, não queria sequer ficar no quarto, só queria que respeitassem meu direito de ir e vir.
Tudo bem.
Minha redenção veio a cavalo.
Fosse o que fosse, não deu certo, foi exatamente o que ele me disse no outro dia: eu fracassei, Rivelino, retumbantemente, duas vezes.
Foi o sol mais gostoso que já tomei.
O importante é que agora que essa moça deu de aparecer, minha caixinha de areia voltou a ser limpa. Se não tivesse me apertado no colo ou me tratado feito um cachorro, já teria ido embora com ela.
❤️
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