Não sou bom com essa coisa de críticas e resenhas, mas estou lendo um livrinho ma ra vi lho so, e preciso contar. A morte é um dia que vale a pena viver. Ana Cláudia Quintana Arantes. Ela é médica. Doutora Ana Clara Quintana Arantes. Eu não a conhecia, mas a imagino com voz doce e paciência de anjo. Fala sobre cuidados paliativos. De gente que vai morrer. Ela é mestre em cuidados paliativos. Mas não só. Ela também te enche de socos. Vou tentar explicar melhor. É bom pensar na morte. Não só bom, necessário. Pensar na morte é pensar na vida – e tome clichê. Digo isso porque geralmente precisamos dum câncer terminal pra dar valor ao tempo. Pra simplesmente pensar no tempo. Esperando o fim do trabalho, o fim do dia, o fim da semana, do mês, do ano, não pensamos no fim da vida, que é a consequência óbvia de toda essa espera. É o diagnóstico duma doença que pode te tirar a vida que te faz pensar nela. Até lá, andamos por aí como imortais. Fechando os olhos pra morte como se nenhum de nós fosse perecer um dia, como se fechar a janela espantasse o sol. Até que o ar acaba. Cedo ou tarde será sua vez de se ver em cima duma cama precisando de quem te dê banho, te leve comida, isso se você ainda puder comer pela boca, alguém que te troque a fralda, te sorria e que faça tudo isso sem te fazer se sentir um fardo. Sua família pode tentar mentir pra você. É uma alternativa. Forçar os médicos a mentirem também. Você está melhorando, é só uma coisinha boba, se deite e tente relaxar. Mas você está morrendo. Pode sentir a morte. Tudo dói, o corpo todo grita de dor, não dá pra se movimentar, você já não faz xixi com tanta frequência, quando faz nem percebe e já fez, come pouco e dói pra engolir, e aquela gente toda entrando e saindo do quarto com a mesma conversinha de que você está cada dia melhor. Você sabe que não está ficando melhor. Entre uma crise e outra, um remédio pra diminuir a dor e outro, o que você quer é conversar, falar de escolhas, do tempo perdido, que agora não passa em segundos, e sim de oito em oito horas, de seis em seis horas, doze em doze horas, seu tempo quem dita é a dor e você quer falar disso, dos arrependimentos, dos três minutos mais felizes da existência, quer falar da vida, mas só te falam de morte, que você não vai morrer et cetera, e como a própria doutora diz no livro: você vai morrer. A gente quando se vê nessa situação, entre a vida e a morte, sabe no olhar que está sendo enganado. E não adianta mentir. O corpo não mente. A doença não mente e a morte não atrasa. Ela chega quando dá na telha e acabou. Cuidados paliativos é dar a esses últimos momentos significado. Sentar e escutar. Passa pela consciência da finitude, entender que o fim é o momento de olhar pra trás, fechar o caixa e ver no que deu. Cada um tem seus pesos, sua história, e a cada caminho escolhido se está se preparando pro fim, cada bom dia ao vizinho, cada moedinha negada no farol, o abraço que faltou, aquela briga besta no futebol que te deixou longe dum amigo de décadas, a maneira como você tratou o padeiro, sua mulher marido seus filhos, a dança na escola da filha que você não foi pois estava trabalhando, a peça no teatro que você não assistiu porque brigou com a mulher, o porre que você não tomou porque não queria trabalhar com ressaca no dia seguinte, isso tudo vai dizer como você vai partir: é a vida que garante a serenidade na morte. E a função da família, e dos médicos que lidam com o fim anunciado e inevitável, é apenas estar ali, presente, demonstrando ao quase defunto que a morte é natural, que ele tem a quem contar de suas reflexões, pois uma coisa boa que uma doença terminal pode oferecer é a noção do fim de tudo. O bom e velho cair a ficha. Do diagnóstico ao fim da luta, você será você como nunca antes, a dor vai te tomar por completo, você pode emagrecer até não aguentar mais, cair em depressão, precisar de comida na boca, sentir sua fralda sujando sem conseguir segurar, sentir a respiração doer cada dia um pouquinho mais, e ter alguém que se importe com seus últimos dias, que esteja perto no tempo que ainda lhe resta e não te transforme numa cruz a ser carregada, eu sei que não consegui ser claro, mas é disso que precisamos ao nascer: atenção. Não pense que na hora de morrer será diferente. Parto natural, vida natural, morte natural. Escreve muito bem a doutora. É aqui que eu queria chegar. Hoje li na Folha um editorial chamado Direito à morte. Sobre a eutanásia. Enquanto a doutora advoga a kalotanásia, uma espécie de morte relativamente tranquila relacionada aos programas de cuidados paliativos. O Parlamento de Portugal aprovou recentemente a legalização da eutanásia. Diz a Folha que “hoje, Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Colômbia e Canadá permitem a eutanásia ativa, quando alguém auxilia outro a morrer. Esses países também permitem a prática do suicídio assistido, assim como a Suíça e alguns estados norte-americanos, entre outros. Nesta modalidade, um profissional de saúde ajuda outra pessoa a encerrar a vida, mas a ação para que isso aconteça é de responsabilidade de quem deseja se matar.”. No Brasil, eutanásia é crime, e não parece que uma discussão dessa natureza possa surgir num governo que mal sabe falar da vida, tratando gravidez precoce enfiando na cabeça da menina que ela só ficou grávida porque não vale nada e pronto, da próxima vez não transe, oras – ou finja que nada aconteceu até ser tarde demais. O ponto a que quero alcançar advém duma ideia da própria autora. Como ela disse, quando alguém adoece, a família toda adoece junto. Ver uma mãe que passou a vida toda pra lá e pra cá o dia inteiro, varrendo ali limpando aqui, fazendo comida, correndo no mercado, acordando antes de todo mundo, de repente cair desesperançada pela própria medicina, sem poder se mover, urrando de dor, destrói todos ao redor. Os cuidados paliativos são então uma resposta ao dar de ombros da medicina quando se encerram todas as opções de tratamento pra tal doença, diminuindo dores físicas e emocionais até que o pior, ou melhor, finalmente aconteça. Outra resposta seria a eutanásia. Se eu posso poupar minha família de um sofrimento inútil pra ambas as partes, se me vejo desenganado pelos médicos e só o que me resta é aguentar mais dor dia após dia, não vejo motivo pra escolher diferente. Bais ou benos. O real apego à vida só dá as caras aos quarenta e cinco do segundo tempo. É aí que quem esqueceu de viver o tempo que recebeu esperando isso e aquilo, torcendo pra amanhã ser melhor e valer o dia de hoje, desprezando e ignorando pessoas e às vezes amigos, brigando com garçom por um copo trocado, buzinando feito quem está sempre atrasado, se dá conta da própria vida. As pendências pesam. E por mais que os cuidados paliativos possam ajudar a colocar essa cabeça no lugar e dar ao doente uma morte menos dolorosa, porém não muito menos, não dar ao indivíduo o direito de morrer sem passar pelo processo do fim irreversível, pior que isso, não dar a ele a chance de poupar sua família de vê-lo acabar aos poucos, isso deveria ser o crime. Quando negamos que um familiar que já não tem mais motivo pra sofrer tanto possa partir, estamos pensando em nós mesmos e em mais ninguém. A doutora explica como a morte é um processo natural da vida, que não tem nada a ver com acabar, mas com viver. Morrer não é o fim, mesmo porque o corpo físico perece, mas momentos não morrem, cada palavra se torna eterna assim que dita. A ausência pode ser sentida, mas a presença vai muito além de estar perto. Se estivéssemos suficientemente perto de quem agora morre aos pouquinhos sem que nada possa ser feito, jamais optaríamos por arrastar essa vida que já não atende por esse nome, amarrados numa vaga esperança de a morte desistir e ir atrás de outra pessoa, pra assim podermos dizer o que não dissemos, ver o filme que não vimos, rir o que não rimos, abraçar tudo o que ficou faltando. A libertação parte da constatação de que te amei o quanto pude, e por você fui tão amado que não posso te negar a paz de morrer sem dor, preciso perpetuar teu sorriso por onde você passou, antes que já não seja possível enxergar resquício do que fora você um dia.
Título criativo!
O direito à determinar a própria vida é tão óbvio, que a discussão que a sociedade suscita ao tema é certidão da ignorância gritante do ser humano. Não à toa a eutanásia foi aprovada, em sua maioria, em países muito desenvolvidos socialmente.
Final poético.
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O brasileiro prefere assim, nós fugimos da morte, especialmente quando a morte é de mãe e pai, puta vida, só dos velhos tocarem no assunto morte a gente já fica bravo. Poderíamos aproveitar a saúde pra planejar a morte, coisas como se quero ou não um velório, se tenho uma música especial pra tocar na despedida, se quero ser cremado, se meus órgãos vão apodrecer comigo ou salvar outras vidas….Preferimos o desprezo pelo inevitável, fingindo que não vai acontecer o que já está acontecendo: estamos morrendo e não tem volta. Mas um dia a gente chega lá, e se não chegar tudo bem também, já estamos acostumados a não dar em lugar algum. É nóis
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🙂
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A morte é um mistério inexplicável e inevitável , para a maioria , assustador. O que se tem medo é pouco cogitado , o que é construído culturalmente sobre esse tema tira a liberdade das pessoas de falarem sobre ele. As pessoas abrem mão de sua “liberdade”, para pertencerem às outras, a suas opiniões , suas idéias, suas “verdades”. Eu mesma tenho poucos anos que me inseri em minha própria vida. Assumi minhas opiniões e me responsabilizo por minha “liberdade”. A morte deve ser sempre falada como um tema comum , até para naturalizar sua essência, que nos torna muito mais humanos, fragmento, pó. Adorei o tema!!
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Bela reflexão!
Eu trabalho com cuidados paliativos, sou grande admiradora da dra Ana Cláudia e esse livro é realmente tocante.
Se eu pudesse resumir o livro em uma frase do seu texto seria “é a vida que garante a serenidade na morte”.
Que a gente possa aprender a viver todos os dias!
Abraços
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Biografia do inventor da Geriatria
https://freudonthedock.wordpress.com/2020/06/06/crepusculo/
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QUE COISA LOUCA ESSA IDEIA DE MORRER: O QUE CHEGA PRIMEIRO E, LOGO EM SEGUIDA SOBE DO FUNDO DO POSSO? – COM O DETALHE DE CHEGAR VAZIA E RETORNAR CHEIA? Seria a caçamba ou a vida? Ou seria a morte e a corda?
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Lendo essa postagem me veio na cabeça toda uma memória do que passamos com o processo de falecimento do meu pai. Em lágrimas fui buscar meus escritos sobre o tema, um que escrevi no calor do momento, e outro decorrido 1 ano. Não sei se te interessa ler.
https://cycoidea.com/2021/02/03/experiencia-com-a-morte/
https://cycoidea.com/2022/01/24/1-ano/
Enfim, vou buscar esse livro para ler, fiquei curioso.
Abrá!
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“A ausência pode ser sentida, mas a presença vai muito além de estar perto.”
Cara, você escreve demais. Cada palavra sua me toca profundamente, de um jeito muito positivo. Leio seus textos com os olhos marejados até o final, pois eles ressignificam até os mais meros detalhes da minha curta vida.
Se cuida aí e continua escrevendo! Te desejo um 2023 cheio de ideias para novos posts.
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Republicou isso em Basicamente Alice.
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