Beber até morrer, essa é a solução

Vou falar um negócio que pode me render olhares tão ou mais horrorizados, não, horrorizado é muito forte, horrorizado a gente fica quando tocam fogo em mendigo, talvez perplexo, um negócio que pode me render olhares um tanto perplexos. Melhorou. Por outro lado, como dizia Boechat, vivemos num país com duzentos milhões de palhaços, ninguém igual a ninguém, pensando razoavelmente parece óbvio que tenhamos por aí um milhão (ou dez) pedindo ditadura militar, outro milhão pedindo revolução popular, mais tantos milhões cagando pra essa politicagem toda, quanta sorte a deles, os futebolistas, marinheiros, as tias da faxina que ficam rindo alto no fundo do ônibus de manhã, essas mulheres não falam do tal do trânsito em julgado que só funciona quando você tem dinheiro pra contratar um Kakay (salário mínimo não paga, só pra constar) pra ficar recorrendo recorrendo recorrendo. Se você for um dos trezentos mil presos provisórios socados em oitenta dentro de celas que cabem doze, você vai continuar preso culpado e condenado em primeira instância, isso quando tiver sorte de chegar a ela. Claro que dar tomé em cláusula pétrea, como gritam por aí que o Congresso precisa fazer, também é como tentar vender como novo um copo espatifado grudado com super-bonder: vai quebrar de novo e vai quebrar rapidinho. Se não funciona o STF, cobre, grite, saia às ruas até que funcione, se querem tanto aparecer em Roda Viva, que saibam que os estamos vendo falar sobre justiça enquanto Renan Calheiros passeia por aí alegremente com processos pendentes atingindo maioridade nas gavetas de ministros – do contrário, em três anos podemos eleger um Fidel (vários deles) e os mesmos que hoje tentam enfiar o trânsito em julgado na segunda instância e extinguir recursos pra STJ e STF, vão chorar se perderem suas propriedades pela mesma lógica. Se deputados e senadores podem mudar cláusula pétrea, então podem mudar todas elas, inclusive a que te garante a propriedade e outras regalias. Talvez seja a hora de conversar sobre a absurda espetacularização de ministros que deveriam ser completamente neutros e desconhecidos, os últimos a se deixar às vistas da pressão popular e especialmente política, aquela pressão gostosa que faz o cara mudar de opinião do dia pra noite e defender ambas, o assassino e o assassinado, com a mesma ênfase de quem tem nas mãos a verdade que libertará todo um povo – não que eles não gostem, eles se esbaldam. Isso é só um exemplo do que as tias do ônibus não falam, pois pra elas importante é a menina maluca da novela que só não matou a mãe porque protagonista de novela não morre. Mas estava falando do Boechat, e ele tem toda razão: inverossímil seria duzentas milhões de cabeças andando na mesma direção. Como todo clichê confirma uma verdade: tem louco aí pra tudo. Por mais que uns possam achar demagogia, outros vão entender e uns até concordar. O que eu quero dizer é que privilégio mesmo é ter um ônibus legal, não carro do ano que nem chegou ou moto de cem mil e essas máquinas todas. Se existe um aprendizado que Haddad deixou em SP, ele está nas ciclovias e faixas especiais pra ônibus e afins. Não se melhora o transporte público primeiro pra depois as pessoas usarem – se alguém ligasse pra pobre os ônibus já estariam decentes desde 1910. Primeiro você abre os espaços, aguenta as milhares de pauladas de motoristas nervosos com menos espaço pra suas rodas, coloca radares pra ninguém sair arremessando bicicletas pelo trânsito (radares fixos bem visíveis e com placas, de preferência, pois se o radar é pra educar, colocá-los escondidos só nos leva a acreditar que o único intuito nisso é ganhar dinheiro pelas rebarbas e não melhorar a sociedade), cria campanhas pra enfiar na cabeça das pessoas, quanto menores melhor, que a cidade não foi feita pra carros, os carros é que dominaram as pessoas e então as pessoas passaram a construir tudo ao redor dos carros, e então, devagarinho devagarinho as pessoas vão se rendendo ao metrô que chega mais rápido, e na frente do metrô passa um ônibus que também não vai atrasar pois já tem o cantinho reservado pra completar sua linha, e se a parada não estiver numa distância do seu agrado, você pode pegar uma bicicleta ou um dos patinetes que vão estar por ali, esperando você, e daí conforme os mais acima na pirâmide forem se rendendo e largando os carros na garagem, os donos das empresas, junto de suas prefeituras, vão se ver na obrigação de melhorar as condições de seus carros, com preço justo e mais de um ônibus por dia pra ninguém ter de ser socado porta adentro pra conseguir chegar em casa. O voto fácil está no pobre, mas a classe média grita mais alto – e quanto maior a classe mais alto o grito e mais rápida a solução. Esse é o país em que vivemos: se você quer melhorar a vida do pobre, antes terá de convencer o dono do banco. Por isso me estranha quando demonizam esses PSOL PCdoB et cetera. Exageros temos todos, eu não fico em lugar fechado de jeito maneira, pode estar dez graus negativos, chovendo ventando, se não deixarem uma janelinha aberta, não demora eu arrumar briga, começa a subir o calor, suor, aquele vento que não bate, aquela gente toda respirando o mesmo ar e ar nenhum passando, definitivamente não entra na minha cabeça que alguém se sinta confortável trancado numa sala. Não fossem eles, estaríamos todos passando o almoço de domingo no trabalho – embora muitos já desfrutem desse privilégio. Eu também não quero o Boulos invadindo a minha casa, mas ir lá escutar o que aquelas pessoas com filhos e sem teto têm a dizer sobre tantos prédios de especulador abandonados pelos centros das cidades ninguém vai. O Boulos foi. Quando gente como o Suplicy levanta três da manhã pra ir na favela brigar contra expulsão em massa de famílias pra lugar nenhum, é obrigado a ouvir que ele é quem está se aproveitando da fragilidade do momento pra aparecer. Marielle morreu barganhando votos. Voltando ao Haddad, embora tenha transformado sua coluna na Folha num folhetim do PT e entregado sua vida política nas mãos dum ex-presidiário que nem gosta dele tanto assim, foi quem deu o primeiro passo. Ele ao menos fez o mínimo por quem votou treze, pensou pra além dos quatro anos da eleição e espalhou faixas exclusivas pela cidade, apanhando de tudo quanto era canto, mas firme, explicando calmamente em meio à gritaria, que ali estava o futuro, como diz Marcelo Gleiser, a idade da pedra não acabou por falta de pedra, nós também não precisamos esperar acabar o petróleo pra mudar de ideia. Pra quem ganha um salário mínimo e sai das quebradas de bicicletinha ou fica horas de pé pendurado igual macaco nos galhos dos ônibus, aqueles tais que Paulo Guedes nenhum se importa na hora de mandar cada palhaço se virar sozinho com sua aposentadoria pra no fim da vida morrer com duzentos reais, já foi um grande passo. Literalmente.

11 comentários em “Beber até morrer, essa é a solução

    1. A cada dia que passa me convenço mais e mais de que Juca Kfouri tem mesmorazão em dar o título de Confesso que perdi à sua biografia. Cedo ou tarde todos acabamos por escrever esse mesmo livro, com todos os sonhos de todas as lutas em prol nem de igualdade em si, mas de menos desigualdade, menos violência, preconceito…. e todos terminamos no mesmo lugar: em lugar algum

      Obrigado, aliás, pela atenção

      Curtido por 2 pessoas

  1. Você poderia estar em um grande jornal. É bom de ler!

    Sobre o assunto, toda descoberta por aqui, sob pauladas e latidos, é como redescobrir a roda; falamos de coisas que já existem e funcionam muito bem há muito tempo. O modelo oposto ao americano de locomoção urbana, como o que expôs bem, é ponto pacífico há várias décadas nos países da Europa.
    O norte-americano prioriza o carro e demoniza o coletivo, entretanto sua gasolina (pura), veículos, peças e licenciamento são amplamente, absolutamente acessíveis e baratos.

    O Brasil não tem um modelo de mobilidade de massa nem americano, nem europeu. O nosso é brasileiro, mesmo. Um carro pelado, caro e com gasolina batizada a 25% de álcool, ao lado de motos de baixa cilindrada pilotadas loucamente, e atrás de um coletivo com trabalhador pendurado na porta e pivete de rua equilibrado sobre o para-choque.

    Como diria Alborghetti: “é… tá uma MEEERDA, esse país!” Kkkkk

    Ou Renato Russo, “Que país é esse?”

    Curtido por 3 pessoas

  2. O impressionante que alguns comentaristas de economia com aumentos de preços (gasolina, carne, entre outros) diminuição da previsão do salário mínimo, desemprego formal em alta, continuam a florear suas análises para manter uma ideia de quem estamos superando a crise… aff…

    Curtido por 3 pessoas

  3. Perplexa? Não…Só acho que a única saída é uma revolução socialista. O capitalismo é sinônimo de crueldade, lucro acima da vida. PT, PSOL, PCdo B, suas apostas são eleitoreiras. Os trabalhadores produzem, os trabalhadores devem se apropriar. O povo pobre não deve se contentar com migalhas. Temos que tomar a história em nossas mãos. Chega de sustentar parasitas.
    Quanto ao título, lembro Baudelaire, “Embriagai-vos… Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude… Mas embriagai-vos”.

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