Meritocracia

Menino pobre, destino comum, onde o pai morreu bem cedo, a mãe trabalha o dia inteiro. Dois empregos. Sai de um vai pro outro. No bairro o que se tem varia entre sinuca, maconha e tiro. Nunca ganhou brinquedinhos que estimulam a concentração, livros pra aguçar a criatividade, noites inteiras no mundo da imaginação. Café da manhã era café mesmo – quando tinha. Na escola passava horas olhando a lousa e tudo parecia grego. Começou a se culpar, se sentir burro. Desistiu. Com o dois mais dois que deu pra pegar, faz o que lhe resta, vai trabalhar. Tira a mãe de um emprego e assume parte da renda. Ela quase enlouquece mas não pode negar a exaustão. Nunca entrou num restaurante tão bonito – nunca entrou num restaurante, pra ser mais preciso. Nem sonhava que aquelas coisas de novela existiam mesmo. Gente bonita de roupa chique que entra, senta, pede come e sai. Seu nome virou assobio, uma mão que levanta, um olhar estranho. Passou a ter vergonha de gente, ou vergonha de si próprio. Meteu na cabeça que seus modos precisavam mudar. Aos dezesseis abre o primeiro livro. Demorou quarenta minutos no prefácio. Na segunda página a primeira já não existia na memória. Concluiu que devia se manter quieto em seu lugar, essa coisa de livro é pra gente rica.
garçom, onde fica o toilette?
oi… é… acabou o do banheiro?
Mas não era de [papel-]toalha que ela precisava. Mandou chamar o gerente indignada, ser humilhada pelas gracinhas de um garçom é inadmissível. tinha que ser pobre essa gente, raça de vagabundos que vive nas costas do governo, depois reclamam da situação, saber de estudar ninguém quer, mas do bolsa-família pra churrasquinho não abrem mão. Ganhou um jantar grátis. O menino perdeu o dia, o que também tem seu lado bom, ao menos dá pra chegar mais cedo e passar um tempo com a mãe. Desceu do ônibus viu fumaça, vinha da sua rua, correu desesperado. Não era na sua casa. O fogo foi numa vizinha, destruiu todo o barraco da coitada. Até onde se sabe a dona estava no trabalho e as duas crianças com a avó. Os bombeiros chegaram como carros de imprensa, parece que foram lá só pra cobrir o resultado. A polícia apareceu e logo se foi. Não havia tanto o que fazer, além de vasculhar os destroços. Saíram com um saco preto. é só o cachorro, se acalmem – o cachorro. As razões não se sabe muito, segundo autoridades pode ter sido alguma coisa na tomada, um problema elétrico que gerou um curto-circuito, ninguém ganharia nada investigando aquilo, afinal. Não contaram o tempo, mas não deu muito a mãe apontou na esquina com as crianças. Cada qual com seu picolé. Um caiu.

19 comentários em “Meritocracia

  1. Uma tragédia que, como tantas outras, não é responsabilidade de ninguém. Ninguém viu. Não é comigo. Um azar, mas sorte a minha que o azar não é meu. E ainda assim, em meio a essas tragédias, ainda há solidariedade. Não? Espero que sim, que eu mesmo as vezes penso que já morri…

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    1. Pois é, meu amigo. A famosa solidariedade que se restringe à própria classe(leia-se amigos e interesses). Se é melhor que eu, que se foda. Se é pior, paciência. “Nossos” governantes que comemoram. É como dizem, da nossa constituição só restou a lei de Gerson.

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      1. Pois… O medo de perder o pouco que se tem, transforma a maioria das pessoas em bichos acuados, que só se importam em garantir a sobrevivência imediata. O resto deixa de ser importante. O outro deixa de ser importante 😦

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      2. É cultural, a mídia instiga o medo criminalizando o preto, o governo patrocina e a polícia executa. Guerra contra as drogas(quem são as drogas?). A defesa do pobre é crime porque a miséria é culpa dele. O plano perfeito. A burguesia não aceitaria perder seus sub-trabalhadores nunca, LIMPAR UMA PRIVADA JAMAIS. Educação? Você não precisa de educação se não for filho de médico, juiz…vá trabalhar, vagabundo. No melhor estilo sonho americano. O pobre, automaticamente, vê o rico pegando fogo e caga. Sem falar no judiciário subserviente à política. O Brasil do 1% que dá certo. Demo-cracia.

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  2. Impossível não assimilar teu texto a cidade do Rio de Janeiro – pelo menos foi o primeiro lugar, quase que instantaneamente, que me veio a cabeça. É uma realidade triste e que acontece com tantos e em tantos lugares, que é de perder as contas. Confesso que estava na “torcida” para ele dar a volta por cima, buscar conhecimento (sem ser necessariamente na escola, acredito que quando se quer aprender algo, qualquer meio é válido e bem mais eficiente que a escola), e voltar pro emprego mostrando que ignorância não é doença e nem provação de caráter e que aquele argumento “tinha que ser pobre essa gente (…)” com ele não mais! Tudo é passível de aprendizado e que ele foi atrás do conhecimento e o obteve. Mas sei que a tua crônica é real e não um conto com final feliz, como eu estava na torcida. Ela retrata a verdade nua e crua da vida dessas pessoas e nós, de fora, só ficamos na torcida para que a vida delas seja mais digna e menos desumana. O esquecimento proposital do estado para com os cidadãos, me deixa extremamente revoltada. Quem dera se um dia esses sanguessugas engravatados vivessem uma semana, que seja, nas mesmas condições do garoto do conto e de seus familiares… Muito legal tua crônica! Adorei lê-la e refletir um pouco sobre. =)

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    1. Você foi no ponto exato. Essa sensação de impotência, quando só nos resta “torcer”, isso revolta a alma até a última gota. Vivemos num país que não tem mais metáfora. Quando se diz “rouba mais do que pode carregar”, quantas vezes vimos isso num domingo a tarde em família? Os humoristas já não precisam trabalhar pois as piadas vêm prontas, coisas como o Cunha dizendo que depositaram não sei quantos milhões na sua conta pra prejudicá-lo não é digno de Jim Carrey? Faça um teste, use todas as expressões que encontrar, metáforas, piadas, exagere até o último e depois reflita: não importa que tipo de atrocidade você pensou, isso realmente aconteceu e por vezes mais surpreendente, fugindo da nossa nossa própria capacidade. A única reflexão que nos resta é o aprofundamento em nossa história – como a Alemanha fez com o Nazismo et cetera. Conhecer nossos escravos, nossos senhores, expô-los. Nós precisamos nos constranger perante o mundo pra depois pensar em mudança. Ninguém aprende sem erro e nenhum governo que tivemos se propôs a confrontá-los. O Brasil é um país morto e qualquer coisa que dissermos ou fizermos que fuja dessa profunda reflexão sobre nós mesmos e duma extrema mudança em nossa educação, é plantar rosas num caixão.

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